Uma colecção de raras preciosidades

Cronologia Histórica

José Manuel Silva
Bastonário da Ordem dos Médicos

Em 2007, pelas mãos dos doutores Ferreira de Carvalho e José Carlos Marinho, tive a grata oportunidade de conhecer o Dr. Hermes Castanhas. Aquilo que, ao princípio, era uma simples curiosidade, transformou-se rapidamente numa profunda surpresa e num incontido espanto.

O título deste prefácio foi o que encimou o artigo que o Dr. Ferreira de Carvalho publicou no Boletim da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos, no número de Setembro/Outubro de 2007.

Sem dúvida alguma que a mais rara preciosidade era o próprio Dr. Hermes Castanhas. Pelo seu percurso de vida, personalidade eclética, exercício ético da medicina, espantosa memória, estonteante vivacidade e fabulosa colecção de raras preciosidades médicas.

Alguém para quem se olha com aquela pontinha de saudável inveja e se pensa que também se gostaria de ter sido assim e de um dia ainda estarmos intelectualmente tão bem conservados.

A admiração começa logo que entramos nos jardins desta casa de traça colonial portuguesa dos fins do século XIX. É como voltar atrás na história e começarmos a entrar num mundo quase irreal dos livros dos nossos avós.

Mas os segredos maiores estão bem guardados no sótão. Um sótão típico dos nossos sonhos, onde a cada passo nos vamos detendo em cada pormenor e descobrimos um novo tesouro, um novo assombro, uma nova história.

O Dr. Hermes acompanha-nos naquele roteiro mágico de passeio pelo passado e explica o significado, a função e a origem de cada peça da sua colecção. Prodigiosa memória que descreve todos os pormenores desta admirável compilação de históricas jóias da arte médica!

Tudo começou com um “carimbo de médico”, igual àqueles que se encontram nas repartições públicas, estilo selo branco. Foi como um vírus que se instalou e nunca mais adormeceu. A partir daí a febre do coleccionismo nunca mais abandonou o Dr. Hermes Castanhas. Com carinho, afirma que herdou o espírito conservador do seu avô, o Prof. David Francisco de Oliveira. Uma a uma construiu uma rara colecção de centenas de peças médicas, algumas resgatadas a depósitos do lixo, outras esquecidas como inválidas, umas tantas adquiridas a troco de pequenas fortunas.

Algumas das peças são objecto de um carinho especial, como o microscópio Lerebour de 1845, transportado para uma exposição no Brasil e que levou um espantado colega alemão a perguntar: “diga quanto, diga quanto que eu passo o cheque”. Ou ainda uma seringa com parafuso micrométrico que era utilizada para fazer linfografias a doentes com elefantíase pelo Prof. António Martins, cirurgião no Hospital do Ultramar, e que foi encontrada num serralheiro em Lisboa, passando por uma das primeiras ampolas de RX que veio para Portugal. São inevitáveis os sorrisos perante um conjunto de irrigadores do início do século passado, com os mais estranhos formatos, um dos quais, em porcelana, “oferecia” ao paciente, assim que iniciava a sua actuação, o prazer de ouvir “Le Petit Duc”, a “Valsa de Boccace” ou outro trecho musical!

Vários Pinard’s autenticamente esculpidos em madeira e tantas, tantas outras centenas de peças de obstetrícia – a mais privilegiada – de cirurgia geral, ortopedia, estomatologia e outras especialidades que vale a pena deliciarmo-nos/deleitarmo-nos horas a fio a tentar descobrir o que mais nos irá surpreender. O Dr. Hermes Castanhas é mais um excelente exemplo do aforismo de Abel Salazar, “O médico que só sabe de medicina, nem de medicina sabe”, dedicando-se de alma, coração e carteira à História da Medicina teórica e prática. O seu percurso de vida honra a História da Medicina e dos médicos portugueses.

Nascido em 1932, em Vilarinho do Bairro, Anadia, reformou-se em 2002 do Hospital Distrital de Aveiro, onde foi Director do Serviço de Obstetrícia/Ginecologia. Saiu eternamente apaixonado pelo exercício da sua especialidade médica e acalenta ainda hoje o sonho de manter vivas centenas de peças da História da Medicina Portuguesa, muitas das quais já percorreram diversas exposições: Porto, Coimbra, Algarve, Torre de Belém, Fundação Calouste Gulbenkian, Congresso Nacional de Medicina da Ordem dos Médicos, Rio de Janeiro. Em Setembro de 1989, durante o Congresso da E.A.G.O. (European Association of Gynecology/Obstetrics), realizado em Cracóvia, Polónia, em face da riqueza material e do incomensurável saber do coleccionador, foi nomeado Presidente da História da Medicina desta Sociedade.

Este catálogo que tenho a honra de prefaciar apresenta apenas algumas das peças da colecção. Abre o apetite para o resto. A verdadeira sobremesa seria efectuar uma visita à Casa Museu Dr. Hermes, como o próprio tão afectuosa e apropriadamente baptizou.

Fica o convite.

Um dia teremos o Museu de História da Medicina da Ordem dos Médicos.