Pedro Appleton
Promontório Arquitetos
Quando visitamos a Casa de alguém, entramos inevitavelmente no universo privado de quem a habita. Somos convidados a um certo nível de intimidade, privando com objetos que foram tocados, peças de mobiliário gastas pelo tempo, memórias em forma de retratos inscritas nas paredes ou sobre mesinhas. Podendo ser grande ou pequena, faustosa ou modesta, visitar uma “casa” é visitar a vida de alguém. Por isso são tão inesquecíveis as visitas aos palácios da Ajuda, Queluz ou Pena, como à casa dos Patudos em Alpiarça ou da irmã Lúcia em Aljustrel – não depende da monumentalidade ou qualidade artística, mas da alma que a guarda.
A primeira vez que entrei na casa de Aradas, outrora casa de um brasileiro de “torna viagem”, entrei pelo jardim e fui recebido por uma cadela simpática. Dei a volta à casa deixando o poço à minha direita e uma Araucária meia “mutilada” por um trovão, à esquerda. Dando assim a volta à casa, atravessava-se um barracão e mais um anexo depois de uma “latada”, entrando pela porta de trás.
Entrei nesta casa pelo lado íntimo, reservado aos “da casa”. Foi também dessa maneira que entrei na vida e na história da família do Francisco Castanhas, filho do Dr. Hermes Castanhas que nos acabava de deixar. As coisas desarrumadas nos seus lugares, testemunhavam a intimidade de uma vida que se interrompeu e que o Francisco me quis ainda mostrar sem pudor, porque queria que conhecesse o que restava para conhecer do seu pai. Já na volta exterior, tinha apreciado a “pele” de um edifício modesto, mas de formas puras, e irrepreensíveis simetria e proporção. Mas o “esqueleto” seduziu-me no exagerado pé-direito, os papéis de parede “importados” para lugar de encontro à volta da mesa de jantar, as cores garridas das carpintarias ao gosto da época das profícuas casas de “brasileiro” na zona de Aveiro – com a prevalência de algumas matizes verdes, verde/azuladas, amarelos e grenats – e as “escaiolas” e estuques “acarinhados” em pequenos restauros ao longo da vida, claro está, mais exuberantes no lado contrário da casa, disposto à entrada formal e salas para visitas.
Foi, porém, no sótão, do tamanho de uma casa inteira, que conheci a coleção que já me tinha sido mostrada no catálogo de parte de um espólio bem fotografado, assim como ao seu colecionador. As peças visíveis dispunham-se em vitrinas empoeiradas, todas misteriosas, muitas de expressão imediatamente dolorosa, outras como que fazendo parte de um alfabeto por decifrar. Coleções de objetos contundentes, incisivos, drenantes, perfurantes, penetrantes, regurgitantes, inalantes, organizados por tamanhos, portanto por níveis de alcance e acesso a corpos e almas por socorrer.
A uma certa curiosidade, confessadamente sádica, associou-se-me também um certo deslumbre estético, quer pela repetição sequencial de objetos a lembrar as absurdas disposições nas estantes de arqueologia no Cairo, quer pelo desenho de instrumentos quase sensuais que se adaptam à anatomia de partes escondidas do corpo humano. Nada disto terá sido a motivação deste colecionador, certamente. Interessou-lhe a função, a história dos objetos e da evolução das terapêuticas, a possibilidade de guardar, relacionar e mostrar as peças, cuja função científica é reveladora de tanta sabedoria e engenho acumulados. Moveu-o certamente um sentido de responsabilidade maior, entre preservar peças com as quais se cruzou, adquirindo-as e estimando-as, e o legado interpretativo que estas sugerem – no fundo o amor ao “conhecimento” que nunca abandona aquele que entrega a sua
vida à ciência.
Porque se reconhecia como bastante estimável esta coleção, havia que prolongar este ciclo começado pelo pai, assim o Francisco, movendo-se por lhe prolongar a vida e obra como que à procura de um último afago, deitou mãos à obra, e convidou-me a ajudá-lo.
A Ideia da Casa é uma ideia muito forte, porque a casa é contentor e conteúdo deste museu, ou seja, o Dr. Hermes Castanhas foi um médico de proximidade, a sua vida privada confunde-se com a sua atividade profissional como em tantos outros casos de médicos que, até tantas vezes especialistas, tornavam-se pela necessidade médicos generalistas de famílias inteiras, acompanhando várias gerações do nascimento à morte. Por isso, famílias e ambientes domésticos são o cenário ideal para retratar o “médico cuidador”, a sua vida, a sua obra e a sua coleção – tudo congregado num lugar que, sendo o seu, era aberto ao “outro” e assim perdurando
numa casa que, agora vestida de azul e branco, nos fala sobre um saber universal.
Então por isso, entramos no seu espaço privado, onde a atmosfera da sua casa denuncia a sua presença – dos jardins a cada uma das divisões – o olhar do médico anfitrião repousou tantas vezes sobre os mesmos tetos, as portas e as paredes, que agora se vêm pintadas das matizes que já lá estavam – agora menos saturadas – que foram usadas para escurecer o espaço, tornando-o mais intimista, introspetivo e apropriado à modulação temática de um percurso museológico. Por vezes a cor é usada com exagero, cobrindo todas as paredes e tetos, denunciando uma intervenção contemporânea, assim como a marcada distinção entre os vãos existentes e o estilo “minimalista” em que foram abertas novas passagens entre divisões ou a disposição das infraestruturas de iluminação, cablagem e ar condicionado que, aproveitando o magnífico pé-direito, se expõem sem reservas.
Por fim o sótão, que é o lugar mais alto da casa e simultaneamente o mais escondido e secreto, foi em tempos o lugar onde se guardou a coleção. É agora um espaço voltado para o futuro, aquele futuro que é luminoso de esperança e que vê em todas as direções – por isso sobre o soalho de esteira marcado pelo tempo, toda a estrutura de madeira foi pintada de branco, mostrando a “anatomia” ou o “esqueleto” da casa revelado pela luz das quatro janelas viradas aos pontos cardeais – simbolizando a universalidade do conhecimento e a luz da revelação científica que se perspetiva a cada descoberta.